As locações não residenciais durante a pandemia:
- Prescyllia Freitas
- 12 de mai. de 2020
- 7 min de leitura
Atualizado: 24 de mai. de 2022
há ou não possibilidade de revisão da relação locatícia?
Prescyllia Freitas.
A crescente crise que atualmente assola o país, oriunda da pandemia do COVID-19, vem ocasionando gravosos impactos na sociedade, os quais estão atrelados desde os problemas vinculados à saúde pública propriamente dita, até as questões relacionadas às relações de trabalho e de consumo, além dos inúmeros conflitos que englobam o mercado imobiliário, especialmente no tocante às relações locatícias.
De fato, parece-nos que as relações locatícias serão uma das grandes problemáticas que poderão demandar enfrentamento e cautelosa análise, inclusive, pelo Poder Judiciário, mormente porque as dificuldades de cumprimento das obrigações assumidas nos contratos de locação nos soam como algo notório e iminente.
Isso porque, não obstante já existirem sérias restrições e recomendações de distanciamento social, que, por si só, diminuem a circulação de pessoas e conduzem à queda do faturamento das empresas, inúmeros municípios e estados brasileiros estão determinando o fechamento dos comércios, justamente para evitar aglomerações de pessoas e, assim, inibir a propagação do coronavírus.
Ressalta-se, neste aspecto, que o Decreto Presidencial nº 10.828, de 20 de março de 2020, regulamenta, através do art. 3º, § 1º, as atividades de caráter essencial que não podem ser objeto de ordem de paralisação. Logo, os comércios que não forneçam as atividades listadas no referido decreto podem, por consequência lógica e jurídica, ser objeto de ordem de fechamento, que é justamente o que vem ocorrendo na prática.
À título de exemplificação, é o que determina o Decreto nº 59.298, de 23 de março de 2020, o revogado Decreto nº 59.285, de 18 de março (Município de São Paulo/SP), o Decreto nº 47.282, de 21 de março de 2020 (Município do Rio de Janeiro/RJ), o Decreto nº 20.521, de 20 de março de 2020 (Município de Porto Alegre/RS) e o Decreto nº 042 de 19 de março de 2020 (Município de Torres/RS).
Consequentemente, com a determinação de fechamento do comércio (compreendendo lojas em geral - de ruas e shopping-, bares, restaurantes, cinemas, casas noturnas, dentre outros), o resultado advindo é a queda brusca do faturamento dos comerciantes, zerando-o, na maioria dos casos, o que causa prejuízos incontroversos e que, ao se analisar que sequer existe qualquer segurança quanto ao prazo de vigência de tal medida, tendem a agravar-se ainda mais.
Isso porque, se, por um lado, o faturamento das empresas é praticamente zerado, por outro, as obrigações que as mesmas possuem frente a terceiros, incluindo o pagamento de aluguéis, permanecem, até segunda determinação, hígidas, e é aqui que surge a grande problemática envolvendo a eventual possibilidade de revisão dos contratos locatícios.
Sobre a referida problemática, vários são os artigos jurídicos que vêm sendo publicados nas redes e que, de uma forma genérica e categórica, concluem pela possibilidade de suspensão dos pagamentos dos aluguéis, diminuição dos valores ou até mesmo extinção da relação contratual.
As conclusões defendidas são calcadas principalmente nos fundamentos de que a pandemia vivenciada se trataria de caso fortuito ou força maior, caracterizando “acontecimento extraordinário e imprevisível” e, com isso, atraindo a incidência dos arts. 317[1], 478[2], 479[3] e 480[4] do Código Civil. Há, ainda, uma pequena minoria que defende que a redução poderia configurar uma situação análoga à deterioração inimputável da coisa (no caso, das faculdades transferidas ao locatário de usufruir do bem), e que, na esteira do art. 567 do Código Civil[5], autorizaria “pedir redução proporcional do aluguel”.
Ou seja, classificam os acontecimentos como extraordinários e imprevisíveis (passíveis de ensejar a suspensão de pagamento, revisão ou até extinção do contrato) para, a partir disso, aplicar os respectivos efeitos nos contratos em geral.
Contudo, a metodologia de abstração que vem sendo realizada, salvo melhor juízo, parece-nos equivocada e incongruente com nosso sistema jurídico, uma vez que, em primeiro momento, se deve analisar cada caso e/ou cada relação contratual/locatícia, de forma individual, para, a partir disso, averiguar se há tipicidade do fato e se o mesmo se enquadra no conceito abstrato das normas que são suscitadas[6].
Em outros termos, é preciso, antes de se concluir pela possibilidade de suspensão de pagamentos, revisão ou extinção dos contratos, analisar quais os efeitos que os acontecimentos oriundos da pandemia repercutiram, individualmente, em cada caso, averiguando se os mesmos realmente tornaram as obrigações excessivamente onerosas ou impossibilitaram a parte de cumprir o contrato.
Isso porque, em que pese na maioria dos casos ser notório que o faturamento do comerciante possuiu uma queda brusca, há casos em que possivelmente não houve queda nos lucros ou que a mesma foi exígua, uma vez que, não obstante o comércio se encontrar fechado, as atividades que gerem lucros imediatos podem ter sido realizadas através de home office ou através de qualquer outro meio que não necessite da abertura do comércio propriamente dita.
Logo, a questão vai muito além da conclusão e conceituação jurídica, de forma genérica e direta, dos acontecimentos, demandando-se uma análise cautelosa, caso a caso, e sempre buscando averiguar a boa-fé das partes, os impactos causados às mesmas (e, aqui, ressalto a necessidade de se analisar os impactos igualmente causados ao locador), além de sempre buscar, na medida do possível, manter a relação contratual.
Ressalta-se que não se defende, aqui, a impossibilidade de alterar as relações contratuais frente à pandemia vivenciada, mas sim a imperiosa necessidade de se analisar com mais cautela tais questões e seus efeitos, buscando sempre averiguar, e, mais uma vez, friso, os impactos causados em cada relação contratual individual, mormente porque a eventual alteração da mesma somente deve advir de uma efetiva alteração das premissas fáticas, passíveis de ocasionar prejuízos[7].
E, isso, ocorre justamente porque “o vínculo obrigatório fica subordinado, a todo tempo, ao estado de fato vigente à época de sua estipulação”[8]. Logo, eventual alteração do vínculo obrigatório deve ser necessariamente precedida da existência e comprovação de alteração substancial dos fatos subjacentes à relação contratual, ocasionada por evento superveniente, imprevisível e extraordinário, que altere profundamente a economia contratual.
Por derradeiro, é de salutar relevância mencionar que, antes de se pleitear ao Judiciário, nos parece mais razoável a busca pelo diálogo entre as partes, pautado na boa-fé e no bom senso, a fim de que seja solucionado extrajudicialmente o conflito, com a fixação de valores que atendam o interesse dos envolvidos, o que é plenamente cabível, deve ser fomentado e advém de uma consequência lógica de nosso atual ordenamento jurídico, sendo autorizado pela própria Lei de Locações que, em seu art. 18, possibilita “(...) às partes fixar, de comum acordo, novo valor para o aluguel (...)[9]”.
[1] Art. 317. Quando, por motivos imprevisíveis, sobrevier desproporção manifesta entre o valor da prestação devida e o do momento de sua execução, poderá o juiz corrigi-lo, a pedido da parte, de modo que assegure, quanto possível, o valor real da prestação.
[2] Art. 478. Nos contratos de execução continuada ou diferida, se a prestação de uma das partes se tornar excessivamente onerosa, com extrema vantagem para a outra, em virtude de acontecimentos extraordinários e imprevisíveis, poderá o devedor pedir a resolução do contrato. Os efeitos da sentença que a decretar retroagirão à data da citação.
[3] Art. 479. A resolução poderá ser evitada, oferecendo-se o réu a modificar equitativamente as condições do contrato.
[4] Art. 480. Se no contrato as obrigações couberem a apenas uma das partes, poderá ela pleitear que a sua prestação seja reduzida, ou alterado o modo de executá-la, a fim de evitar a onerosidade excessiva.
[5] Art. 567. Se, durante a locação, se deteriorar a coisa alugada, sem culpa do locatário, a este caberá pedir redução proporcional do aluguel, ou resolver o contrato, caso já não sirva a coisa para o fim a que se destinava.
[6]Neste sentido é o magistério de Carlos Roberto Gonçalves: “(...) “quando o fato é típico e se enquadra perfeitamente no conceito abstrato da norma, dá-se o fenômeno da subsunção” (GONÇALVES, Carlos Roberto. Direito Civil Esquematizado, 2ª ed.. Saraiva: São Paulo, 2014, pág. 77).
[7]O doutrinador Flávio Tartuce, acerca da matéria, ensina justamente que “o Código Civil de 2002 consagra a revisão contratual por fato superveniente diante de uma imprevisibilidade somada a uma onerosidade excessiva” (TARTUCE, Flávio. Manuel de direito civil. vol. único. 2 ed. rev. e atual. São Paulo: Método, 2012, p. 570).
[8]DINIZ, Maria Helena. Código Civil anotado. 14 ed. rev. e atual. São Paulo: Saraiva, 2009. p. 398.
[9] Art. 18. É lícito às partes fixar, de comum acordo, novo valor para o aluguel, bem como inserir ou modificar cláusula de reajuste.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
BRASIL. Decreto nº 042 de 19 de março de 2020. Dispõe sobre medidas complementares para o enfrentamento da emergência de saúde pública de importância internacional decorrente do surto epidêmico de coronavírus (COVID-19), no Município de Torres. Torres: Câmara Municipal, 2020. Disponível em: https://torres.rs.gov.br/wp-content/uploads/2020/03/042-20-CORONAVIRUS.pdf. Acesso em: 26 mar. 2020.
BRASIL. Decreto nº 10.282, 20 de março de 2020. Regulamenta a Lei nº 13.979, de 6 de fevereiro de 2020, para definir os serviços públicos e as atividades essenciais. Diário Oficial da União, Brasília, DF, 20 mar. 2020. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_Ato2019-2022/2020/Decreto/D10282.htm. Acesso em: 26 mar. 2020.
BRASIL. Decreto nº 20.521, de 20 de março de 2020. Determina o fechamento dos estabelecimentos comerciais, construções civis, industriais e de serviços em geral, exceto os estabelecimentos que menciona, para enfrentamento da emergência de saúde pública de importância internacional decorrente do novo Coronavírus (COVID-19) no Município de Porto Alegre. Porto Alegre: Câmara Municipal, 2020. Disponível em: http://dopaonlineupload.procempa.com.br/dopaonlineupload/3288_ce_285702_1.pdf. Acesso em: 26 mar. 2020.
BRASIL. Decreto nº 47.282, de 21 de março de 2020. Determina a adoção de medidas adicionais, pelo Município, para enfrentamento da pandemia do novo Coronavírus - COVID - 19, e dá outras providências. Rio de Janeiro: Câmara Municipal, 2020. Disponível em: http://smaonline.rio.rj.gov.br/legis_consulta/61095DECRETO%2047282_2020.pdf. Acesso em: 26 mar. 2020.
BRASIL. Decreto nº 59.285, de 18 de março de 2020. Suspende o atendimento presencial ao público em estabelecimentos comerciais e o funcionamento de casas noturnas e outras voltados à realização de festas eventos ou recepções. São Paulo: Câmara Municipal, 2020. Disponível em: http://legislacao.prefeitura.sp.gov.br/leis/decreto-59285-de-18-de-marco-de-2020. Acesso em: 26 mar. 2020.
BRASIL. Decreto nº 59.298, de 23 de março de 2020. Suspende o atendimento presencial ao público em estabelecimentos comerciais e de prestação de serviços. São Paulo: Câmara Municipal, 2020. Disponível em: http://legislacao.prefeitura.sp.gov.br/leis/decreto-59298-de-23-de-marco-de-2020. Acesso em: 26 mar. 2020.
BRASIL. Lei nº 8.245, de 18 de outubro de 1991. Diário Oficial da União. Brasília, 1991. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/l8245.htm. Acesso em: 26 mar. 2020.
BRASIL. Lei nº 10.406, de 10 de janeiro de 2002. Diário Oficial da União. Brasília, 2002. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/2002/l10406.htm. Acesso em: 26 mar. 2020.
DINIZ, Maria Helena. Código Civil anotado. 14 ed. ver. e atual. São Paulo: Saraiva, 2009.
GONÇALVES, Carlos Roberto. Direito Civil Esquematizado, 2ª ed.. Saraiva: São Paulo, 2014.
TARTUCE, Flávio. Manuel de direito civil. vol. único. 2 ed. rev. e atual. São Paulo: Método, 2012.
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